INÍCIO / Sete Lágrimas

Sete Lágrimas

4 NOV _16h30
Igreja do Convento de São Pedro de Alcântara

Com um pé em trezentos e outro em quatrocentos

Concerto estreia e lançamento do projeto Loa: André Dias de Escobar e as suas "Laudas e cantigas spirituaaes, e orações contemplativas (...)" de 1435, um diálogo com o Laudario di Cortona (XIII) e o Laudario di Firenze (XIV).

Filipe Faria | Voz, Percussão
Sérgio Peixoto | Voz
Silke Gwendolyn Schulze  Flauta dupla, Douçaine, Charamela, Flauta
Emilio Villalba | Vihuela de arco, Cítola, Harpa harp, Saltério, Alaúde, Symphonia

Com um pé em trezentos e outro em quatrocentos

Chegámos a André Dias de Escobar (c.1348-1450/51) e às suas Laudas pela mão do nosso amigo Professor Manuel Pedro Ferreira. Foi ele quem nos abriu a primeira janela sobre a vida e a obra deste homem que viveu perto de um século, com um pé em trezentos e outro em quatrocentos, monge, mestre em teologia formado em Viena de Áustria ainda no século XIV (1393), abade do mosteiro de S.to André de Rendufe, comendatário de Rendufe e S. João de Alpendurada, bispo da cidade espanhola de Ciudad Rodrigo (1410), bispo da cidade francesa de Ajaccio (1422-1428) – mais tarde bispo emérito da mesma cidade –, bispo titular da cidade grega de Mégara (1428), professor universitário, autor de importantes tratados com grande difusão na Europa medieval, ”canonista insigne, conselheiro de Papas, viajante infatigável, culto, erudito, homem de letras e de virtudes”.

Nos documentos que o referem chama-se André Dias de Escobar, André Dias, Andreas Didaci, Andreas Hispanus, André de Rendufe ou Andreas Ulixbonensis. Nascido por volta de 1348, André Dias caminha nas ruas de cinco reinados: D. Pedro I, D. Fernando I, D. João I, D. Duarte e D. Afonso V e vive a crise dinástica de 1383-1385. Este “viajante infatigável”, personagem surpreendente e apaixonante, viaja à Toscana (era amigo do abade português da 'Badia beneditina em Florença) e viveu três décadas em Roma, na Cúria, como penitenciário. As viagens em Itália e o tempo que passa nesse país são o ponto de partida para o seu livro de 1435 Laudas e cantigas spirituaaes, e orações contemplativas, do muyto sancto e boom deus Jhesu, Rey dos çeeos e da terra; e da muyto alta e gloriosa sua madre, sempre virgem sancta Maria, sobre o qual nos debruçamos aqui.

Sabemos que as laudas, cantigas e orações de Escobar têm origem nos laudários italianos e que estes estão divididos por temáticas diversas como a Mariana, a Temporal ou a Penitencial. Escolhemos olhar os laudários de Firenze e de Cortona e encontrar as edições críticas mais recentes dos textos musicais. Descobrimos o trabalho dos professores Martin Dürrer, Theodore Karp e Blake Wilson. Este último, acabou mesmo por se juntar a mim e ao Sérgio Peixoto neste trabalho apaixonante e a ser outro apoio fundamental na descoberta destes trabalhos.

O projecto crescia nas nossas cabeças. Sabíamos que queríamos fazer nascer novas contrafacta – processo histórico de substituição de um texto por outro sobre uma determinada melodia –, propondo uma relação umbilical nova (ou mesmo potencial) entre estes textos e estas melodias. A personagem maior de André Dias de Escobar espreitava através dos séculos e exigia este olhar e dedicação. Merecia, até, um novo fôlego criativo, como o original, a quase 600 anos de distância. Fazer nascer som a partir da página.

A partir destas melodias procurámos estabelecer ligações entre os temas dos textos italianos que as acompanham e os textos de Escobar. Daí resultam as contrafacta de 1. Adorote oo sancta vera cruz (André de Escobar) sobre a melodia de Oimè lasso (Laudario di Cortona), ambas de tema penitencial e 2. Benedicta sejas tu madre de Deus vyvente (Escobar) sobre Regina Sovrana de grande pietade (Laudario di Firenze); 3. Louvada seja sempre toda vya (Escobar) sobre a melodia de Laude novella (Laudario di Cortona); e, finalmente, 4. Salve Virgo preçiosa (Escobar) sobre Co la madre del beato (Laudario di Firenze), as últimas três de tema mariano. Escolhemos, ainda, olhar o tema temporal dos laudários e do livro de Escobar e deixar os instrumentos, sozinhos, a visitar as melodias de Die ti salvi, Regina e Laudamo la resurrectione (Laudario di Cortona), numa espécie de proposta de contrafacta sem texto.

Gostaríamos de agradecer a incansável amizade, cumplicidade e parceria científica dos Professores Manuel Pedro Ferreira, através do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical –, unidade de investigação no seio da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Blake Wilson, através do Music Department do Dickinson College (PA), Los Angeles, Califórnia.

André Dias de Escobar morre, em Lisboa, por volta de 1450/51… “morreu velhinho, pois em 1435 já tinha mais de oitenta anos. Os dias foram passando sobre a letra gótica das suas loas, cantigas, prosas e orações rítmicas. E o gosto foi mudando com o tempo. Porém, a confraria de S. Domingos de Lisboa, à honra do Nome de Jesus, lá estava para perpetuar o espírito de bispo velhinho e pobre que a fundara e para a qual escrevera, amorosamente, tantas páginas, em terra estrangeira. Como Horácio, podia Mestre André Dias soltar a frase triunfante: non totus moriar – não morrerei de todo! Depois, passaram alguns séculos e o seu livrinho sumiu-se no grande esquecimento das coisas desconhecidas".

Filipe Faria
Idanha-a-Nova, 1 de Janeiro de 2023

Loa.
André Dias de Escobar (c.1348-1450/51) e as suas "Laudas e cantigas spirituaaes, e orações contemplativas, do muyto Sancto e boom deus Jhesu, Rey dos çeeos e da terra; e da muyto alta e gloriosa sua madre" de 1435. Um diálogo com o Laudario di Cortona (s. XIII) e o Laudario di Firenze (s. XIV).

Direção artística e contrafacta:
Filipe Faria, Sérgio Peixoto

Parceria científica:
Blake Wilson — Dickinson College, Los Angeles, California
Manuel Pedro Ferreira — CESEM/FCSH/NOVA, Lisboa

Um projecto:
Arte das Musas

Estrutura financiada por:
República Portuguesa - Cultura
Direcção-Geral das Artes

Parceria:
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO City of Music

Adorote oo sancta vera cruz
André Dias de Escobar (c.1348-1450/51)
contrafactum sobre Oimè lasso, Laudario di Cortona (s. XIII)

Die ti salvi, Regina
Laudario di Cortona

Benedicta sejas tu madre de Deus vyvente
André Dias de Escobar
contrafactum sobre Regina Sovrana de grande pietade, Laudario di Firenze (s. XIV)

Louvada seja sempre toda vya
André Dias de Escobar
contrafactum sobre Laude novella, Laudario di Cortona

Laudamo la resurrectione
Laudario di Cortona

Salve Virgo preçiosa
André Dias de Escobar
contrafactum sobre Co la madre del beato, Laudario di Firenze

Regina Sovrana de grande pietade
Laudario di Firenze 


“(...) É de notar que André Dias se dirige, no prólogo (fol. 3), aos confrades, convidando à construção de uma experiência sonora dançante e timbricamente exuberante diante do altar dedicado ao nome de Jesus:

“Viinde ora e viinde todos vos outros confrades e servos da confrarya do boo Jhesu, e commygo estes melodyosos cantares, hymnos, prosas e laudes, que aquy em este livro conpiley e escrevy aa honrra do boom Jhesu, altas vozes cantade, baylade, dançade, orade, tangede, em orgõos, em atabaques, com trombas, com anafiis, com guytarras, com alaudes, e com arrabiis, ante o seu altar. E per mar e per terra louvade, glorificade, exaltade, e chamade o seu nome santissimo e muyto espantoso de Jhesu”.

Ao exortar os músicos e os confrades não só a “orar, dizer e cantar, e com altas vozes braadar, estas prosas, estas canticas, estes laudes e hymnos e orações” da sua lavra, mas também a fazer, sobre estes textos, “cantos músicos, contrapontos e chaãos, melodyosos e dolçes, por que muyto plaz ao senhor Deus Jhesu de o louvardes per vossos cantos”, André Dias supõe que sejam aplicados aos textos não só melodias cantadas a uníssono (cantos chãos), mas também texturas polifónicas (contrapontos). Mais adiante (fol. 28), André Dias reitera que nas festas principais de Jesus Cristo a cantoria deverá ser feita “com orgõos e trombas, e com alaudes e outros estormentos, altas vozes e com todos plazeres” associados à música. (...)”

Manuel Pedro Ferreira, Lisboa, 21 de Dezembro de 2022 – CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade NOVA de Lisboa –  in livro "Loa", Arte das Musas (MU0126), 2023

Fundado, em 1999, por Filipe Faria e Sérgio Peixoto, Sete Lágrimas é um dos mais relevantes projetos europeus na área da Música Antiga. Com 24 anos de atividade, desenvolve uma extensa atividade editorial de 14 títulos e uma intensa carreira nos mais destacados Festivais, Salas e Centros Culturais de 13 de países da Europa e da Ásia: Portugal, Bulgária, Itália, Malta, Espanha, China, Suécia, França, Bélgica, Noruega, Luxemburgo, Alemanha e República Checa. Dedicados aos diálogos da Música Antiga com a contemporaneidade juntam músicos de diferentes horizontes em torno de projetos conceptuais, animados por investigações musicológicas ou por processos de inovação e criação em torno dos sons, instrumentário e memórias da Música Antiga. Na sua fundação lançou os alicerces para a relação - inédita à data - da Música Antiga com a contemporaneidade com a encomenda, para a sua estética e instrumentário, de novas obras a compositores contemporâneos como Ivan Moody, Andrew Smith ou João Madureira.

A par de projetos como a triologia “Les Explorateurs” - encomenda Philharmonie Luxembourg, inspirada no universo criativo do consort, com uma equipa internacional liderada pelo encenador Benjamin Prins, apresentada entre 2018-2022 em 54 récitas - ou do projeto “Se chovesse um oceano” (2020/21), de Filipe Faria e Wiinie Dias (Brasil) - projeto de dança, música, fotografia e performance filmado em Berlin, Hamburg, Düsseldorf, Wuppertal, Zürich e Idanha-a-Velha, com os bailarinos Futaba Ishizaki e Fuyumi Hamashima (Japão), Naomi Brito, Rafaela Bosi e Rafaelle Queiroz (Brasil), Isabella Heylmann e Hayley Page (Austrália) e Borja Bermudez (Espanha) -, a dupla de compositores Faria e Peixoto inauguram, em 2006, um caminho, inédito e inovador no panorama da composição musical contemporânea que intitulam de Nova Música Antiga. Sete Lágrimas conta com o apoio do Ministério da Cultura e da DGARTES, desde 2003, e do Município de Idanha-a-Nova - UNESCO Creative City of Music, desde 2012.

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